sexta-feira, 4 de agosto de 2017

É DIFÍCIL PENSAR-SE NA HUMANIDADE SEM PENSAR-SE NO LIVRO

O Fundo bibliográfico da Língua Portuguesa (FBLP) foi criado em 1988 com o objectivo de estabelecer as relações bilaterais entre Portugal e Moçambique, na área da gestão de políticas da língua e da leitura em língua portuguesa.

À escala nacional, o FBLP potencia as políticas públicas na área das bibliotecas públicas, da formação de gestores em ciências documentais, na promoção do livro e da leitura e trabalha em estreita colaboração com o governo, tentando optimizar o programa do governo na educação, na cultura e na administração pública.

A propósito do dia 23 de Abril, dia mundial do livro, o presidente do FBLP, professor Doutor Nataniel Ngomane falou ao debate acerca da importância do livro e da leitura para a Humanidade. Segundo Ngomane, hoje é difícil pensar-se na Humanidade sem pensar-se no livro.

Crescêncio Manhique
C.M Qual é a importância do livro para a Humanidade?
N.N O livro é um depositário de memória e a memória é um instrumento que nos permite olhar atrás para poder ver a frente. O Homem só consegue olhar a frente se tiver capacidade de olhar atrás. Através do livro faz-se a avaliação, balanço e análise, isto é, absorve-se as experiências do passado sejam elas negativas ou positivas e em função delas avança-se para frente.

Por meio do livro, também obtem-se a capacidade de captar as realidades sociais, económicas, culturais, religiosas, filosóficas, com vista a enfrentar e confrontar o futuro, inclusive o próprio presente.
Hoje em dia, o instrumento que por excelência nos disponibiliza estas diversas áreas de conhecimento é o livro. É difícil pensar-se na Humanidade sem pensar-se no livro. Por exemplo, com uma certa tranquilidade posso falar da sociedade grega, romana mas eu nunca estive lá, o que a mim me permite captar e processar esse conhecimento é justamente o livro.

Portanto, o livro contem dentro de si todo conhecimento acumulado e sistematizado que é fundamental conhecer para poder-se dar continuidade e progresso da Humanidade. Daí que tenho afirmado que é importante ler-se e quem não lê, automaticamente se exclui desse conhecimento e enfraquece as possibilidades de poder factorizar e solucionar uma série de questões que o presente e o futuro lhe coloca.

C.M Em Moçambique a produção de livro didáctico assim como literário é feita na base da língua portuguesa. Embora esta seja uma língua de ensino as estatísticas demonstram que somente 15% dos moçambicanos têm o português como língua materna. Tendo em conta esta realidade, como incentivar o gosto pela leitura no seio dos alunos moçambicanos?
N.N Não me parece que o gosto pela leitura mantenha alguma relação de causa e efeito com o facto de existir 15% dos moçambicanos que tem o português como a língua materna. Uma parte significativa de moçambicanos que tem ou teve como língua materna, língua bantu tem hábitos de leitura em língua portuguesa. Podia citar-me a mim mesmo, mas vou citar o escritor Luís Bernardo Honhuana que a sua língua materna é ronga mas é um bom leitor em língua portuguesa.

Portanto, não é tanto a percentagem ou língua materna que faz com que alguém seja um bom leitor ou tenha hábito de leitura. Eu creio que os hábitos de leitura são adquiridos em casa com as práticas familiares e não na escola como muitos pensam.
É importante que os pais habituem as crianças a ouvir pelo menos uma história por dia, lendo-as para elas. É necessário também que, assim que puder o pai comprar livros para a criança e levá-la a criança para as bibliotecas, feiras do livro e tenha uma mini biblioteca em casa pois o hábito e gosto pela leitura são adquiridos no seio da família através de uma educação informal.

C.M Que comentário se apraz a fazer acerca do estágio actual da circulação do livro literário em Moçambique?
N.N É verdade que o estágio actual da circulação do livro em Moçambique ainda deixa muito a desejar, embora não tendo aqui comigo dados concretos mas sei que mais de 70% de editores e livrarias existentes neste país estão concentradas na Cidade de Maputo e os distritos não têm livrarias e nem editoras. Aliado à isso é a falta de biblioteca nos distritos, nas escolas, logo, a circulação do livro literária tem sido fraca.

C.M O que fazer para mudar esta situação?
N.N Bom, é preciso que haja maior expansão do mercado livreiro, a circulação e distribuição do livro, criação das bibliotecas em todas escolas do país e nos distritos só assim é que a circulação do livro será também maior, mais do que isso importa também investir-se mais nas feiras do livro. As feiras do livro são por excelências os ambientes que disponibilizam os livros a um preço mais baixo, diferentemente das livrarias. Evidentemente é preciso também que a quantidade de exemplares por edição seja muito mais alta do que aquela que é tirada hoje. O ideal seria que em cada escola primária e secundária do país houvesse pelo menos 100 exemplares de título, o que significa que a indústria livraria em Moçambique tem que crescer. Este é um desafio muito grande para as editoras, livrarias, autores, escritores, distribuidores e para todos os moçambicanos. Ora vejamos, em média a tiragem de livro no acto do seu lançamento é de 500 e é lógico que é só para meia dúzia da população residente da cidade de Maputo.
A circulação do livro em Moçambique estimula a exclusão social daí que é preciso repensar-se seriamente nas políticas da circulação do livro.

C.M O livro deve ocupar sector de destaque no vosso imaginário, procurando, deste modo, formas de garantir seu acesso a um crescente número de cidadãos e assegurar a sua permanente valorização como mecanismo de transmissão de conhecimento”, palavras do presidente Armando Guebuza aquando do vosso emponsamento. Volvido um ano como presidente do FBLP, o que já foi feito relativamente ao apelo do presidente?
N.N O que foi feito até aqui é tentar organizar a casa, o meu antecessor, o Prof. Doutor Lourenço do Rosário esteve aqui por cerca de 20 anos. De lá para cá, temos estado a organizar a casa do ponto de vista de projectos como feiras de livro, apetrechamento de bibliotecas escolares, distritais, bibliotecas caixas, programas de leitura, projecto Proler, concursos literários e o estímulo do gosto à leitura através do programa Ler e Compreender, Feira de livros escolares mas diários, palestras sobre a importância da leitura. Estamos a preparar uma lista básica de autores moçambicanos, angolanos, brasileiros, portugueses que julgamos obrigatório existir numa escola, assim como os livros legislativos que visam responder a este apelo do presidente aquando do empossamento com particular olhar para as crianças em idade pré-escolar, caso consigamos, a criança passará a ingressar ao sistema educativo moçambicano enquanto já cultivou o gosto pela leitura.

C.M Como presidente do FBLP, que acções podem ser desenvolvidas com vista a garantir o acesso ao livro e leitura para as pessoas com deficiência?
Nós já estamos a trabalhar nesse assunto. As nossas propostas de bibliotecas nas escolas e distritos já contemplam uma componente de informática que visa introduzir a linguagem hebraica. É necessário que em cada biblioteca escolar haja pelo menos um computador para as pessoas com deficiência visual, por exemplo. Por outro lado, os clássicos moçambicanos devem ser traduzidos para linguagem hebraica. Um deficiente visual deve também ter o acesso a Terra Sonâmbula de Mia Couto, Nickecthe de Paulina Chiziane, Ualalapi de Ungulane Ba Ka Khosa, e mais. É necessário que haja alguém adequado para apoiar a integração da pessoa com deficiência, isto é, um animador bibliotecário. Um indivíduo que tenha conhecimento de língua de sinais e que está em condições de interagir com qualquer tipo de pessoa que frequenta a biblioteca. Em suma é um indivíduo que possa identificar a faixa etária de leitor e a classe que frequenta para poder ajudar a localizar o material que ele precisa.

Por outro lado, é necessário que haja cadeiras e mesas adequadas para a pessoa com deficiência e seja sobretudo criado as infra-estruturas adequadas como casas de banhas e rampas mas não aquelas rampas que no lugar de criar facilidades criam dificuldades de circulação.

Portanto, é nossa perspectiva criar um curso de animadores bibliotecários na qual abordar-se-á as formas de atracção e retenção da pessoa com deficiência na biblioteca, de tal maneira que o sujeito que for terminar esse curso possa praticar a inclusão, chamando e mostrando a pessoa com deficiência de que ele também pode ter acesso ao livro à semelhança das pessoas ditas “normais.”

C.M A tese de doutoramento do Doutor Ngomane é A escrita de Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa e a estética do realismo maravilhoso. Porquê a escolha desses autores?
N.N Escolhi esses autores por várias razões, uma delas é que quando eu era pequeninino a minha mãe lia as histórias e minha avô contava-as para mim. Boa parte delas eram histórias de amor, animais, plantas, histórias de fantasmas, isto é, histórias sobre pessoas que tinham morrido e que num certo período de tempo voltavam para cobrar uma dívida, um namoro inconcluso.  Eram histórias sobre pessoas que se transformavam em animais como cobra, pássaro, histórias sobre feiticarias. E eu chamo a se de literatura de fantastíco que é aquela que nos põe na duvída do tipo será que realmente aconteceu ou é uma pura invenção? Enquanto essa duvída permanecer essa literatura é literatura de fantastíco.

Ora, bastante cedo com os meus 16 anos eu fui morrar em Cuba durante anos e tive contacto com a literatura cubana, mexicana, argentina.
Mia Couto e Khosa começam a publicar a partir da década de 80 e o que aconteceu é que quando eu lia as suas obras não só me lembrava das histórias contadas pela minha avô como também dos escritores como Gabriel Garcia Marques. Daí que me propus a fazer um trabalho comparativo e a grande questão foi: Porquê é que a escrita de Mia e Ungulane são parecidos se nunca houve algum contacto entre esses autores.

São parecidos no sentido em que as acções que são desenvolvidas por personagens são permanentemente complementadas por uma fé, crença e sobre natural. A resposta que eu cheguei e que é discutível é que na verdade não é tanto a semelhança dos textos ou da escrita desses autores mas sim as semelhanças culturais na medida em que a expansão europeia pela América e África leva consigo a expansão da cultura.

C.M Vezes sem conta, de forma rígida o Doutor Ngomane tem recusado ser considerado luso-moçambicano. Porquê?
N.N Não sou luso moçambicano, sou moçambicano. De luso só tenho a língua. A minha cultura é fundamentalmente bantu. As minhas línguas maternas são xitsua e ronga que foi a minha língua de socialização no Lourenço Marques. O meu ritual de nascimento, casamento, cerimónia de morte, a relação com os mais velhos e novos, embora em algum momento possa ter a componente cristã mas tem a ver com o Bantu. A ideia da lusofonia é uma forma de legitimar uma dominação cultural, por isso, eu me recuso a ser considerado lusófono.

C.M A terminar, qual é o livro que está a ler e o que gostaria de partilhar acerca do mesmo (livro)?
Eu estou a ler muitos livros em simultâneo. Estou a ler um livro de Humberto Eco, leio também um livro intitulado como aprender a ensinar, esta tem a ver com a área do trabalho. Estou a também a ler um livro de Anibal Aleluia porque estou a produzir um texto. Em suma, eu nunca leio apenas um livro.

Mini-Biografia
Nataniel Ngomane possui uma tese subordinada ao tema: A escrita de Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa e a estética do realismo maravilhoso. Actualmente é professor de Literatura Comparada e de Metodologia de Investigação na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM, Membro do Conselho Consultivo da revista Portuguese Literary & Cultural Studies, do Conselho Editorial Científico da revista Recorte e do Conselho Cientifico Interncional do e-cadernosces da universidade de Coimbra, Portugal.

Tem colaborado como Professor Visitante da Universidade de São Paulo (Brasil), Universidade do Minho, Coimbra e Trás-os-Montes (Portugal), Universidade de Bayreuth, (Alemanha), de Nottingham, (Reino Unido) e Universidade Agostinho Neto, através do Instituto Superior de Ciências da Educação–ISCED, de Luanda onde orienta seminários de Mestrado na área de Estudos Comparados.

Ngomane tem textos dispersos em capítulos de livros, revistas e jornais, além de participação diversa em eventos científicos nacionais e internacionais. A sua área de interesse em pesquisa integra a Literatura Moçambicana e Latino-Americana, o Cinema e a Música moçambicana.



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