Sempre que o dia amanhecesse, Janet dizia ter um apetite de passear pelo
mundo fora a fim de prestar um gesto de caridade, mesmo quando não fosse o
quinto dia útil da semana. Certo dia, Janet decidiu manter-se estagnada junto
ao tronco da frondosa árvore e deste modo indignava a sua própria mãe que,
diariamente, via no seu semblante a preocupação em aventurar-se para terras em
via de desenvolvimento.
Atentamente, observou o alvoroço dos moradores da localidade de Zonguene e
a comitiva de idosas que, de casa em casa, ia pedindo votos em favor dos seus
partidos com vista a vencerem a segunda volta do sufrágio eleitoral que tinha
decorrido há sensivelmente duas semanas. Durante esse processo, algumas idosas
aproveitavam também para conversar sobre coisas que nunca conversavam com os
seus maridos.
Antes da eclosão da chuva, por sinal, torrencial, Janet mudou completamente
do plano que havia elaborado, desde a hora em que se apercebera do amanhecer de
um novo dia. No entanto, abandonou a sombra da mafurreira na esperança de alcançar
um meio de transporte que pudesse levá-la a uma das zonas recônditas da região
norte de Moçambique, para reduzir, consideravelmente, a alta taxa
de criminalidade, mais alta que o número da população activa.
As horas, os minutos e os segundos não tardaram a anunciar o aterrador som
da aterragem do voo que era exclusivo à Janet. Depois de ter atingido o pátio e
arredores do bairro do Aeroporto Internacional de Pemba, momentaneamente, Janet
ficou encantada com a paisagem e o movimento vespertino dos estrangeiros que se
deslocavam àquele ponto, em busca de oportunidades de negócios e implementação
de mega-projectos nalguns distritos da província de Cabo Delgado.
Ao pôr o pé no chão, Janet apreciou a placa que indicava a direcção e a
quilometragem da avenida que dava acesso à praça dos mendigos e desempregados.
Era uma praça sobejamente conhecida até na diáspora, em memória do senhor
Savula, maior criminoso do Séc. XVIII, que vivera naquele tempo da intensa
guerra mundial.
Fustigada pelo calor escaldante que se fazia sentir no fim da tarde do dia
23 de Novembro de 1983, Janet dirigiu-se ao encontro de
desempregados e mendigos que costumavam reunir-se para desfrutarem dos bons
momentos que a vida lhes proporcionava graças aos actos criminosos que por eles
eram protagonizados. Estando já na praça, viu e testemunhou de perto a incrível
maneira de se comportar de tais criminosos, quando, tivera acertado uma
aliciante bolada na noite anterior.
Todos alegres cantavam e dançavam em compasso binário, ternário e até
quaternário. Poder-se-ia confundir com a claque de uma equipa de futebol que
acabara de marcar um golo para a qualificação às meias-finais da Liga dos
Campeões Europeus.
No final da animação, Janet alojou-se no hotel de um proprietário negro
situado na vila turística de Mocímboa da Praia. Na parte
superior do portão desse hotel, havia representações pretas que rigorosamente
interditavam a entrada de pessoas de tez negra. Hotel No Black,
assim era o nome do hotel.
Durante o repouso, de tanto pensar na tarefa que teria logo pela manhã do
dia seguinte, Janet não conseguiu pregar o olho. Imagens fantasmagóricas
embaraçavam-lhe a mente, formando um monumento de criminosos. Eram
desempregados aqui, mendigos acolá, proporcionando um belo espectáculo através
da entoação de cânticos vitoriosos à semelhança do povo africano aquando da
conquista das independências dos seus países na década de 1960.
Os desempregados e os mendigos apresentavam letras e acordes musicais
bastante lindos. Qualquer sujeito que os visse e ouvisse naquele instante,
certamente, ficaria bem maravilhado. Bailavam e pulavam como se festejassem o
fim de uma tremenda peleja.
No transcorrer da madrugada, à medida que, paulatinamente, as estrelas do
céu iam dobrando o manto do seu brilho, o cenário mudava, facto que,
subitamente, no compartimento feminino, se desencadeou num susto que abalou
muitos turistas que ainda se encontravam deitados.
Com um soco esquerdo, Janet furou as grades perpendiculares da janela do
quarto que vestiam 28 cm de largura e 1 metro de comprimento só para contemplar
demoradamente as ondas do mar e o primeiro brilho de clarear do sol.
Estando ainda a deliciar-se do fulgor dos últimos raios solares, Janet
ouviu um timbre de vozes mistas e acidentadas de gente que, com todo o
sacrifício, havia dispensado a confortáveis camas para se exporem à rua em
busca do pão e, logo pela manhã, dava-se a sensação de uma sessão de assinatura
de autógrafos. Assim se deleitavam os petizes como se fossem moscas,
carinhosamente lambendo a semente de manga madura sobre o chão na época de
Verão.
“A alegria vem da barriga e do seu suor viverá o Homem”: assim o dizem as
Sagradas Escrituras!
Com amor, gosto e carinho, Janet avançou para Montepuez, região em causa
para a sua aventura. O intuito era exactamente cumprir com uma das declarações
feita por Jesus Cristo, antes de ter sido encaminhado e crucificado na cruz de
calvário. Nesse sermão, ordenaram-se os 12 discípulos o seguinte:
Ide ao mundo, recolhei os criminosos, desempregados e mendigos que
empobrecem o planeta terra. Proporcionai-lhes uma vida condigna; uma vida livre
de males que enfermam as nações. Se assim o fizerdes, os vossos anos de vida,
ainda que sejam amputados na terra, lá nos céus serão multiplicados setenta
vezes mais. Em nome do pai, o criador dos céus, da terra e de tudo o que nela
abunda. Ámen!
No limiar do dia, nada se fez para além de varrer um grupo de raparigas e
rapazes de tenra idade que, durante a calada da noite, se dedicavam à
criminalidade nas ruelas do bairro de Natite Na sua maioria são petizes que
logo cedo assistiram ao fim das vidas dos seus entes queridos. Alguns nunca
sentiram o calor do colo materno e nem o prazer de pronunciar o doce palavreado
que engloba apenas uma consoante e duas vogais: MÃE. São petizes que, ainda que
cresçam e sejam chefes de famílias, motivos lhes faltarão para recordar,
reviver e transmitir aos felizardos filhos a experiência de uma vida vivida.
Cumprida a comprida missão, Janet comprou uma luxuosa residência no bairro
cimento no Município de Montepuez para albergar os petizes que já carregavam na
testa a sina de miséria, pobreza e todo o mal que um ser vivo consciente não
pode e nem deve imaginar.
Movidos pela inocência e desejo de se aliviar definitivamente do pesado
fardo alicerçado pelas peripécias da vida, os petizes aceitaram o convite de,
brutalmente, se desligarem da rua e sem dizer um simples adeus ao amor e à
compaixão que a rua lhes deu, ao longo de longos anos, anos incontáveis e
indescritíveis.
Com o acto, abria-se assim a nova página no trajecto das suas vidas, que se
compara a um rebelde adolescente, quando, surpreendentemente, é implorado a
receber um irrecusável baptismo religioso.
Várias e sucessivas incidências marcaram a jornada da bonança. Gente de
género e etnia diferentes, mas sob igual tratamento. Uma nova fisionomia
arquitectava-se nos rostos dos petizes. A cada dia, desapareciam as sequelas da
vida da rua que é levada por indivíduos a quem é negado o direito à educação
(formal).
O dia dos petizes obedecia sempre a uma agenda inalterável. Nos dias úteis
da semana, pelas 8h da manhã, no quintal da residência, desenhava-se uma curva
do autocarro com a chapa de inscrição “PINY: G.P 1975” que simbolizava a saída
de petizes para o Colégio do Abu Cherif.
Nesse colégio, as lições eram sempre dadas em línguas árabes. Ao inglês,
língua de cães e gatos, recorria-se em caso de necessidade e extrema urgência.
Aos sábados, uma comissão de líderes religiosos proveniente do município de
Mueda liderada por Issufo Amade Ali transmitia os ensinamentos
básicos do islão recorrendo ao alcorão.
Já no sagrado dia de Allah, a rotina era totalmente diferente. O dia fragmentava-se
em três partes: de manhã, ia-se à mesquita; à tarde desfilava-se pelo mundo
clássico de cinema Kids; à noite, praticavam-se modalidades desportivas no
Ringue Desporto.
Aos feriados, os petizes eram levados aos Lounges Chez
Natalie e Anantara Medjumbe Island Resort. Gozavam de um mundo extraordinário
que, para a nossa realidade, (in)felizmente, ainda constitui uma autêntica
utopia.
Um mundo sem criminalidade, sem desemprego, sem mendicidade, sem
desigualdades sociais, sem exploração do Homem pelo Homem, sem descriminação,
sem preconceito, sem egoísmo, sem ostentação, sem orgulho, sem humilhação e
sem, sobretudo, o complexo de superioridade. Era um mundo caracterizado pela
cultura de humildade, paz e amor ao próximo.
Após se ter dedicado à bonança, decidiu concretizar o sublime sonho que
carregava no ventre da sua mãe como herança intransmissível. As petizas
(donzelinhas), com prematuro crescimento, viram-se aconselhadas a integrar a
equipa de moças que vinham da terra natal da Janet para participar na cerimónia
de despedida de solteiras rumo ao Centro Sexual Khilibiwa de Opkins.
Com as donzelinhas, o centro passaria a ter uma aparência renovada, isto é,
de noite para o dia, tornar-se-ia no lugar mais atractivo da região norte do
país. Por outro lado, havia a crença segundo a qual, de segundo em segundo, o
centro estaria inundado de chuvas de homens, incluindo os que exibissem a
aliança como símbolo de casamento para actualizar a sua potência sexual com
vista a ter uma boa vida conjugal.
Para a tradição de muitos povos africanos, a aliança na mão esquerda
constitui uma prova viva de que o indivíduo já provou da fruta de que Adão e
Eva foram proibidos.
Dois dias antes do final de cada mês, as ditas donzelinhas tinham por
obrigação apresentar à Janet um talão de depósito com respectiva assinatura do
agente bancário. Trimestralmente, auferia-se um subsídio correspondente a cinco
por cento do valor acumulado para a manutenção de cabelos, sobrancelhas,
lábios, seios, unhas, perninhas e…
Enquanto isso, os petizes percorriam os bairros de Napai e Nkoripo do
distrito de Muntepuez para caçar, pescar, rachar a lenha, apascentar o gado e
trazer produtos alimentares para garantir a passagem tranquila da noite. Desta
maneira, Janet, tocava nas estrelas que encobrem o céu. O céu era o limite.
Numa bela manhã, após o habitual mata-bicho das 7h, Janet ouviu uma voz
rouca pedindo licença e, de forma grosseira, impediu uma das suas empregadas
que fosse abrir o portão do quintal. Na sua mente, havia a convicção de que se
tratava do primeiro cliente do dia. Seja bem-vindo e pode seguir-me a mim. Assim
foi recebido o Sr. Lipangue.
Imediatamente, na sala das negociações, instalou-se um clima estranho ao
ponto de despertar a atenção da Maria e Josefina que por lá passavam para a
sala de visita onde costumavam aguardarem pela solicitação para a consumação do
acto sexual.
- Mana Maria, por que esse tanto barulho na sala?
- Não sei…
- É que é tão estranho, mana. Sabes, desde que estamos neste cativeiro
nunca ouvi a mama Janet a falar nesse tom. Acrescentou a Josefina.
Pela natureza de questões que o Sr. Lipangue ia colocando, Janet
apercebera-se que não se tratava de um cliente tal como pensou, mas sim de um
agente da polícia da investigação criminal que procurava apurar a veracidade da
informação que já era motivo de conversa nos cafés e nos transportes semi-colectivos
de Mocimboa da Praia a Montepuez.
Janet, preocupada com o agente policial que lhe havia visitado a
residência, não esperou pela vinda da sua confidente amiga Lizete, com quem só
se avistava no princípio do fim do mês, ou caso houvesse ocorrência de um
tumulto no “Munenguas Bar”, lugar onde, às sextas e sábados, se fazia a
verdadeira feira de gastronomia africana. Todo o sujeito que por lá passava
tinha o direito de comer, beber, fazer fofocas, até de fazer sexo gratuitamente!
A cada instante, os olhos da Janet transformavam-se em verdadeiras lágrimas
de crocodilo. Estando ainda mergulhada no desespero do crime que vinha
cometendo há mais de três anos, Janet lançou os olhos ao ponteiro do relógio da
parede que acabava de marcar duas horas da tarde e dezasseis minutos. Todavia,
não hesitou em levantar-se do sofá da sala das negociações para, através do
ventilador, quebrado atirar o colar que acabara de comprar na loja Ossaman
Yacoob. De repente, preparou-se e foi ao povoado de Paquitequete para encontrar
a Nelsy, albina, curandeira, vencedora do último título de Honoris
Causa.
Após a consulta feita, em sacos de lixo recebeu um monte de raízes e folhas
dispersas que, durante 7 dias e 7 noites de muita fervura, cada donzelinha
devia tomar, pronunciando pausadamente os nomes e as respectivas
características dos homens com os quais se envolvera sexualmente. Por fim,
deviam assaltar as tumbas dos legítimos familiares a fim de prestar o
sacrifício, assim, em menos de quinze dias, a segunda vinda da polícia à sua
nova residência em Mirige estaria inexplicavelmente adiada.
Quando quis pôr-se à rua, Janet abraçou longamente a Nelsy, assegurando-lhe
que seguiria com delicadeza as prescrições dadas. Minutos depois, ouviu o
ronronar do comboio vindo de um lugar invisível e descontroladamente pulou a
linha férrea, dando pelo início do amanhecer de um crime
inconfessável.
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