Nos meandros literários moçambicano, o mês do Novembro é um dos poucos
meses que normalmente tem sido aguardado com muita expectativa por parte da
comunidade dos leitores, pois durante este mês, divulga-se o nome do escritor e
da obra que se consagram vencedor do Prémio Literário 10 de Novembro 2016,
instituído pelo Município de Maputo em parceria com a Associação dos Escritores
moçambicanos com o objectivo de estimular o gosto pela leitura e escrita.
Apesar deste ano, o prémio pertencer ao escritor Nelson Manhisse, o Jornal
O Povo procurou conversar com o escritor José Bione como forma de desvendar o
segredo que nele há ao ponto de, de forma recorrente, conseguir conquistar
vários prémios literários.
Este é um dos poucos escritores moçambicanos que em cada obra adopta um
novo pseudónimo e sem confundir o seu leitor. A seguir, acompanhe na íntegra a
entrevista. José Bione é um
dos poucos escritores moçambicanos que, em cada uma das suas obras, procura
adoptar um pseudónimo diferente da obra anterior. Porquê esta particularidade?
R: Trata-se de uma estratégia muito íntima. Nunca gostei de ser descoberto
antes do apito final. Cada obra, um pseudónimo. O que não muda, é o nome que
está no BI. Não é só o pseudónimo que sofre. Se fores a prestar atenção, a
própria construção frásica, muda. Cada árvore, um machado. Este tem sido o meu
lema. Em cada obra, invento um pseudónimo. Sou um camaleão. Mas não deixo de
ser original. As catanadas estão lá. A melhor forma de identificar-me pode ser
extraída da contundência das palavras. A forma como elas são lançadas, por
isso, a minha escrita deixa cicatrizes na alma dos leitores.
A obra intitulada: Os condenados da terra foi reeditada com outro título,
neste caso, Testamento da Safira, o que é raro no meandro literário
moçambicano. Fale-nos acerca desta criatividade…
R: Quando escrevi o romance: Os Condenados da Terra, por sinal, o primeiro,
ainda estava na fase embrionária da escrita. A emoção era muito grande.
Escrevia sentimentos, o que me atormentava na altura. A questão de estética e
da construção frásica, não me importavam tanto. Aquele romance foi escrito na
rua. Escrevia a andar. Nas paragens. Parado a espera de chapas da Catembe, a
caminho do serviço. Tentava aproveitar todos os momentos. Minha grande
preocupação era apenas transmitir o que sentia. E assim, aconteceu. A obra
estava sem título. Dei a um amigo para apreciar. Emocionou-se bastante. Nunca
na vida tinha visto alguém tão entusiasmado com o sucesso do outro como aquele
jovem. Chamava-se Mário Pelembe. Decidiu que devia participar do concurso
TDM-2008. Neguei. Ele zangou-se. Três dias mais tarde, aceitei. Nessa altura,
muitos jovens aspirantes a escritores, tinham nojo da AEMO. Diziam que era
clube de amigos. Os prémios literários eram distribuídos entre amigos. Essa era
a percepção dominante. Cheguei a acreditar também. Mesmo assim, não desisti de
escrever. Sempre acreditei em mim. Pedi para que atribuísse um título ao livro.
No dia seguinte, apareceu na minha casa bem cedo. Estava muito feliz. Trazia
consigo um título sugestivo: Os Condenados da Terra. Achei fantástico. Ele é
que submeteu a obra ao concurso. Mais ainda, foi ele quem trouxe o jornal na
minha casa. Entregando-me, disse: batemos, grande! Emocionei-me. Abraçamo-nos,
saltitando. Era um jovem ímpar: sem ódio, sem rancor, sem invejas.
Infelizmente, perdeu a vida muito cedo. Acredito que ele aguarda-me no outro
lado da vida. E continua feliz com as minhas vitórias. Tinha um talento
impressionante na poesia. “Os Condenados da Terra” ganhou dois prémios: a
bienal TDM-2008 e João Dias-2008. Na entrega do prémio João Dias, o professor
Aurélio Cuna aconselhou-me a mudar o título. Havia um livro com o mesmo título,
de autoria de Francis Fenon, embora não fosse romance. Concordei. Infelizmente,
TDM já tinha produzido o livro. Agora, troquei. Outro aspecto. Os leitores
sempre falavam de Safira, nunca de Condenados da Terra. Ela era mais famosa que
o livro. Isso incentivou-me a dedicar a obra a mulher que alegra as almas dos
leitores.
A sua mais recente obra intitula-se: A virgem prostituta da montanha. Com o
contraste existente neste título, que mensagem pretende nos transmitir?
R: Se prestares a devida atenção, a vida é a mais perfeita obra de
contrastes. Nossa vida e nossos sonhos violentam-se todos os dias. Anualmente,
biliões de sonhos vão a sepultura. Não são concretizados. Há um enorme vazio
que separa os nossos sonhos das nossas acções. A Virgem Prostituta da Montanha
denuncia essa triste e dura realidade existencial. É um facto que sobrevive
dentro de nós. O título deste livro nasce de um episódio bastante triste. É uma
história de uma mulher macua muito linda. A mais bela do mundo. Carregava
consigo uma terrível maldição. Sua vida estava sombria. Os homens que casavam
com ela, morriam. Tinha um marido espiritual, o espírito da morte. Matava os
seus homens. Para acabar com a sua desgraça, decidiu subir numa montanha.
Chegado no topo da mesma, atirou-se.
Em muitas obras suas usa personagens cujos nomes aparecem nas outras obras,
por exemplo, na obra A virgem prostituta da montanha temos as personagens
Safira e Frenque. As mesmas são encontradas na obra “O Testamento da Safira”e Eterna Paz”. Onde
tem buscado a inspiração ao ponto de inovar desta maneira?
(JB) Os meus romances são gémeos, frutos do mesmo ventre, filhos da mesma
mãe, a Pátria Amada. Safira e Frenque são a alma do mesmo corpo, os romances.
Os livros gravitam em torno dos dois. É um casal maluco, um pouco pior que
muitos casais que andam nessa terra. Vivem momentos terríveis do amor, mas
nunca se separam. Cada adversidade, adoça seu amor. Sobrevivem agarrado aos
extremos. Se não estão no topo do monte, estão no fundo do mar. Mas sempre
juntos. Minha inspiração não é algo de extraordinário, não! É fruto do nosso
dia-a-dia, nossas próprias vivências. Nossas vidas estão cheias de episódios
terríveis. Todos nós podemos escrever um livro. Há muita matéria-prima. Não
invento quase nada. Recolho a matéria-prima da nossa coexistência. Na
realidade, um artista não inventa, apenas reinventa. Une apenas os fragmentos
da sua sociedade e compõe seu sonho. Em cada escrita, reinvento-me. É um
castigo doloroso que me submeto a mim mesmo. Uma escravidão voluntária. Uma
tortura. O pior disto, é o facto de eu estar viciado a essa vida. Perpetuo-me
dessas chatices.
Há quem diga que o momento mais auge de um artista, “escritor”, verifica-se
quando ele próprio testemunha a premiação das obras? Partilha desta concepção?
R: Não há nada fascinante que receber o fruto do seu sacrifício. O prémio é
a patente mais alta da vida de um artista. Quando se repete, a vida torna-se
festa. O prémio doa-nos asas. Faz-nos voar mais comprido e profundo que as
nuvens. A emoção que ferve em nosso sangue, enlouquece-nos em breves instantes.
É doce receber um prémio literário. Anima. Fortifica-nos a alma e nos dá raivas
e motivos para continuarmos a escrever e a repensar.
Estando quase sempre a arrecadar prémios literários, como descreve o
exercício da sua escrita e a crítica que as suas obras são sujeitas?
R: Sou um dos poucos escritores da nova geração que constantemente é
espantado por prémios literários. Tornou-se vício, um cancro. Às vezes, fico
assustado. Pergunto-me: mais uma vez, eu? Mas não deixo de ser feliz. Não estou
interessado em fugir de um prémio. Ainda não tenho tal paciência. Infelizmente,
os meus segundos adversários ficam aborrecidos. Passam a vida criticando-me, em
vez de melhorar cada vez mais. A culpa até pode ser deles. Devem trabalhar
mais, buscando novos horizontes no infinito universo da escrita. Digo segundos
adversários por uma simples razão. O primeiro adversário meu sou eu mesmo. Luto
sempre em vencer-me. Humilho-me dia e noite, em busca de uma possível
perfeição. Na escrita, o segredo é trabalhar cada vez mais, com amor e vontades
ascendentes. Escrever, rescrever. A escrita é como a pintura. Para uma parede
atingir um brilho, deve ser pintada várias vezes. Assim, é a escrita, ela
encanta e se encanta quando é trabalhada na intensidade. Não basta escrever uma
vez e se sentir feliz, não! Deve ser sempre. O sacrifício é amargo. Mas, seus
frutos são uma delícia. Alguns críticos são frustrados, invejosos,
incompetentes, fracassados. Para esses, sou muito surdo. Não perco tempo com
eles. Eles precisam melhorar a sua condição lastimosa. É preciso saber ouvir e
avaliar cada crítica. Muitos, afogam suas mágoas em almas alheias. Mas, há
críticos nobres como os Drs Nataniel Ngomane, Francisco Noa e outros. Esses são
verdadeiros mestres. Aprendi muito com eles. Contribuíram bastantemente para eu
encarar a escrita com seriedade. São pessoas honestas. Falam verdades. Admiro
tanto a sua sabedoria. Mestres duros e justos da sua dimensão, só podem
cultivar jovens sábios e ganhadores. Acompanho suas críticas com muito apetite.
Uma crítica honesta, justa, fermenta-nos a alma. Infelizmente, quando for
injusta, oriunda da boca de um frustrado, pode arruinar a alma mais nobre do
mundo.
José Bione tem um projecto designado: o quarteto da pátria amada. Qual é a
sua consistência?
O Quarteto da Pátria Amada é um show. Uma orquestra literária. A marrabenta
em literaturas. São quatro romances ligados entre eles, estabelecendo um
profundo diálogo. Quero deixar marcas indeléveis na nossa literatura. Os meus
romances têm uma patente. Em cada livro, um fogo. Meus escritos perfuram almas.
Inquietam a todos. Basta ler um dos livros para identificar os outros. Não
precisa ver o nome do autor. A escrita responde em si, silenciosamente. Aquilo
é um trovão, xingualangwandza, um mukuluvanha em literaturas. O trovão vibra de
cima para baixo, consumindo as resistências de tudo e de todos. Minha escrita
tem esse poder de fogo. Consome a atenção dos leitores. É por isso que meu nome
artístico é Dragão. Quando o dragão movimenta-se, surgem tempestades, as
árvores e edifícios ajoelham-se. Eis a força da minha escrita. BEE YONI é uma
recriação de Bione, meu nome de meio. Bione vem de beyond. Em língua inglesa
significa para além de. Trata-se de um sujeito que enxerga para além dos
limites dos olhos. Tento ser um escritor que incomoda. Em minha escrita, busco
o longe, o proibido, o intolerável. Às vezes, o inadmissível. Sou um peregrino
de sonhos, incansável caçador das perfeições. Sonho um outro mundo, distante
das nossas angústias. Eis o sofrimento da minha escrita. Adoro isto!
Os prémios são a terapia dessa dor. As três obras do Quarteto foram
premiadas. Isto é lindo! Cativa-me demais. A última obra está concluída. Também
promete. Todos os dias converso com ela, alinhando as arrestas. Quero deixar
marcas indeléveis na história da literatura moçambicana. Quero que as pessoas
encontrem algo de agradável e misterioso na minha escrita. Que sorriem,
espantem-se. Peguem as cabeças e no final digam: ya! Este gajo tem viagens. Aí,
estarão a viajar na minha companhia.
Mini-Biografia
DRAGÃO BEE YONI é o nome artístico do escritor moçambicano José Bione
Carquete. É natural de Maputo. Licenciado e mestrando em relações
internacionais. Já conquistou mais de uma dezena de prémios literários. Suas
obras versam sobre assuntos que enfermam a nação. Seu primeiro romance (O
Testamento da Safira, antes intitulado Os Condenados da Terra) conquistou dois
prémios nacionais, nomeadamente: Bienal TDM 2008 e João Dias-2008. Seu
projecto, O quarteto da pátria amada e composto pelos seguintes romances: o
Testamento da Safira, A virgem prostitua da montanha, Eterna Paz. Os três
romances foram premiados. A quarta obra está na fase final.
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