sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A MINHA ESCRITA DEIXA CICATRIZES NA ALMA DOS LEITORES

Nos meandros literários moçambicano, o mês do Novembro é um dos poucos meses que normalmente tem sido aguardado com muita expectativa por parte da comunidade dos leitores, pois durante este mês, divulga-se o nome do escritor e da obra que se consagram vencedor do Prémio Literário 10 de Novembro 2016, instituído pelo Município de Maputo em parceria com a Associação dos Escritores moçambicanos com o objectivo de estimular o gosto pela leitura e escrita.
Apesar deste ano, o prémio pertencer ao escritor Nelson Manhisse, o Jornal O Povo procurou conversar com o escritor José Bione como forma de desvendar o segredo que nele há ao ponto de, de forma recorrente, conseguir conquistar vários prémios literários.
Este é um dos poucos escritores moçambicanos que em cada obra adopta um novo pseudónimo e sem confundir o seu leitor. A seguir, acompanhe na íntegra a entrevista. José Bione é um dos poucos escritores moçambicanos que, em cada uma das suas obras, procura adoptar um pseudónimo diferente da obra anterior. Porquê esta particularidade?
R: Trata-se de uma estratégia muito íntima. Nunca gostei de ser descoberto antes do apito final. Cada obra, um pseudónimo. O que não muda, é o nome que está no BI. Não é só o pseudónimo que sofre. Se fores a prestar atenção, a própria construção frásica, muda. Cada árvore, um machado. Este tem sido o meu lema. Em cada obra, invento um pseudónimo. Sou um camaleão. Mas não deixo de ser original. As catanadas estão lá. A melhor forma de identificar-me pode ser extraída da contundência das palavras. A forma como elas são lançadas, por isso, a minha escrita deixa cicatrizes na alma dos leitores.

A obra intitulada: Os condenados da terra foi reeditada com outro título, neste caso, Testamento da Safira, o que é raro no meandro literário moçambicano. Fale-nos acerca desta criatividade…
R: Quando escrevi o romance: Os Condenados da Terra, por sinal, o primeiro, ainda estava na fase embrionária da escrita. A emoção era muito grande. Escrevia sentimentos, o que me atormentava na altura. A questão de estética e da construção frásica, não me importavam tanto. Aquele romance foi escrito na rua. Escrevia a andar. Nas paragens. Parado a espera de chapas da Catembe, a caminho do serviço. Tentava aproveitar todos os momentos. Minha grande preocupação era apenas transmitir o que sentia. E assim, aconteceu. A obra estava sem título. Dei a um amigo para apreciar. Emocionou-se bastante. Nunca na vida tinha visto alguém tão entusiasmado com o sucesso do outro como aquele jovem. Chamava-se Mário Pelembe. Decidiu que devia participar do concurso TDM-2008. Neguei. Ele zangou-se. Três dias mais tarde, aceitei. Nessa altura, muitos jovens aspirantes a escritores, tinham nojo da AEMO. Diziam que era clube de amigos. Os prémios literários eram distribuídos entre amigos. Essa era a percepção dominante. Cheguei a acreditar também. Mesmo assim, não desisti de escrever. Sempre acreditei em mim. Pedi para que atribuísse um título ao livro. No dia seguinte, apareceu na minha casa bem cedo. Estava muito feliz. Trazia consigo um título sugestivo: Os Condenados da Terra. Achei fantástico. Ele é que submeteu a obra ao concurso. Mais ainda, foi ele quem trouxe o jornal na minha casa. Entregando-me, disse: batemos, grande! Emocionei-me. Abraçamo-nos, saltitando. Era um jovem ímpar: sem ódio, sem rancor, sem invejas. Infelizmente, perdeu a vida muito cedo. Acredito que ele aguarda-me no outro lado da vida. E continua feliz com as minhas vitórias. Tinha um talento impressionante na poesia. “Os Condenados da Terra” ganhou dois prémios: a bienal TDM-2008 e João Dias-2008. Na entrega do prémio João Dias, o professor Aurélio Cuna aconselhou-me a mudar o título. Havia um livro com o mesmo título, de autoria de Francis Fenon, embora não fosse romance. Concordei. Infelizmente, TDM já tinha produzido o livro. Agora, troquei. Outro aspecto. Os leitores sempre falavam de Safira, nunca de Condenados da Terra. Ela era mais famosa que o livro. Isso incentivou-me a dedicar a obra a mulher que alegra as almas dos leitores.

A sua mais recente obra intitula-se: A virgem prostituta da montanha. Com o contraste existente neste título, que mensagem pretende nos transmitir?
R: Se prestares a devida atenção, a vida é a mais perfeita obra de contrastes. Nossa vida e nossos sonhos violentam-se todos os dias. Anualmente, biliões de sonhos vão a sepultura. Não são concretizados. Há um enorme vazio que separa os nossos sonhos das nossas acções. A Virgem Prostituta da Montanha denuncia essa triste e dura realidade existencial. É um facto que sobrevive dentro de nós. O título deste livro nasce de um episódio bastante triste. É uma história de uma mulher macua muito linda. A mais bela do mundo. Carregava consigo uma terrível maldição. Sua vida estava sombria. Os homens que casavam com ela, morriam. Tinha um marido espiritual, o espírito da morte. Matava os seus homens. Para acabar com a sua desgraça, decidiu subir numa montanha. Chegado no topo da mesma, atirou-se.

Em muitas obras suas usa personagens cujos nomes aparecem nas outras obras, por exemplo, na obra A virgem prostituta da montanha temos as personagens Safira e Frenque. As mesmas são encontradas na obra “O Testamento da Safirae Eterna Paz”. Onde tem buscado a inspiração ao ponto de inovar desta maneira?
(JB) Os meus romances são gémeos, frutos do mesmo ventre, filhos da mesma mãe, a Pátria Amada. Safira e Frenque são a alma do mesmo corpo, os romances. Os livros gravitam em torno dos dois. É um casal maluco, um pouco pior que muitos casais que andam nessa terra. Vivem momentos terríveis do amor, mas nunca se separam. Cada adversidade, adoça seu amor. Sobrevivem agarrado aos extremos. Se não estão no topo do monte, estão no fundo do mar. Mas sempre juntos. Minha inspiração não é algo de extraordinário, não! É fruto do nosso dia-a-dia, nossas próprias vivências. Nossas vidas estão cheias de episódios terríveis. Todos nós podemos escrever um livro. Há muita matéria-prima. Não invento quase nada. Recolho a matéria-prima da nossa coexistência. Na realidade, um artista não inventa, apenas reinventa. Une apenas os fragmentos da sua sociedade e compõe seu sonho. Em cada escrita, reinvento-me. É um castigo doloroso que me submeto a mim mesmo. Uma escravidão voluntária. Uma tortura. O pior disto, é o facto de eu estar viciado a essa vida. Perpetuo-me dessas chatices.

Há quem diga que o momento mais auge de um artista, “escritor”, verifica-se quando ele próprio testemunha a premiação das obras? Partilha desta concepção?
R: Não há nada fascinante que receber o fruto do seu sacrifício. O prémio é a patente mais alta da vida de um artista. Quando se repete, a vida torna-se festa. O prémio doa-nos asas. Faz-nos voar mais comprido e profundo que as nuvens. A emoção que ferve em nosso sangue, enlouquece-nos em breves instantes. É doce receber um prémio literário. Anima. Fortifica-nos a alma e nos dá raivas e motivos para continuarmos a escrever e a repensar.
Estando quase sempre a arrecadar prémios literários, como descreve o exercício da sua escrita e a crítica que as suas obras são sujeitas?
R: Sou um dos poucos escritores da nova geração que constantemente é espantado por prémios literários. Tornou-se vício, um cancro. Às vezes, fico assustado. Pergunto-me: mais uma vez, eu? Mas não deixo de ser feliz. Não estou interessado em fugir de um prémio. Ainda não tenho tal paciência. Infelizmente, os meus segundos adversários ficam aborrecidos. Passam a vida criticando-me, em vez de melhorar cada vez mais. A culpa até pode ser deles. Devem trabalhar mais, buscando novos horizontes no infinito universo da escrita. Digo segundos adversários por uma simples razão. O primeiro adversário meu sou eu mesmo. Luto sempre em vencer-me. Humilho-me dia e noite, em busca de uma possível perfeição. Na escrita, o segredo é trabalhar cada vez mais, com amor e vontades ascendentes. Escrever, rescrever. A escrita é como a pintura. Para uma parede atingir um brilho, deve ser pintada várias vezes. Assim, é a escrita, ela encanta e se encanta quando é trabalhada na intensidade. Não basta escrever uma vez e se sentir feliz, não! Deve ser sempre. O sacrifício é amargo. Mas, seus frutos são uma delícia. Alguns críticos são frustrados, invejosos, incompetentes, fracassados. Para esses, sou muito surdo. Não perco tempo com eles. Eles precisam melhorar a sua condição lastimosa. É preciso saber ouvir e avaliar cada crítica. Muitos, afogam suas mágoas em almas alheias. Mas, há críticos nobres como os Drs Nataniel Ngomane, Francisco Noa e outros. Esses são verdadeiros mestres. Aprendi muito com eles. Contribuíram bastantemente para eu encarar a escrita com seriedade. São pessoas honestas. Falam verdades. Admiro tanto a sua sabedoria. Mestres duros e justos da sua dimensão, só podem cultivar jovens sábios e ganhadores. Acompanho suas críticas com muito apetite. Uma crítica honesta, justa, fermenta-nos a alma. Infelizmente, quando for injusta, oriunda da boca de um frustrado, pode arruinar a alma mais nobre do mundo.

José Bione tem um projecto designado: o quarteto da pátria amada. Qual é a sua consistência?
O Quarteto da Pátria Amada é um show. Uma orquestra literária. A marrabenta em literaturas. São quatro romances ligados entre eles, estabelecendo um profundo diálogo. Quero deixar marcas indeléveis na nossa literatura. Os meus romances têm uma patente. Em cada livro, um fogo. Meus escritos perfuram almas. Inquietam a todos. Basta ler um dos livros para identificar os outros. Não precisa ver o nome do autor. A escrita responde em si, silenciosamente. Aquilo é um trovão, xingualangwandza, um mukuluvanha em literaturas. O trovão vibra de cima para baixo, consumindo as resistências de tudo e de todos. Minha escrita tem esse poder de fogo. Consome a atenção dos leitores. É por isso que meu nome artístico é Dragão. Quando o dragão movimenta-se, surgem tempestades, as árvores e edifícios ajoelham-se. Eis a força da minha escrita. BEE YONI é uma recriação de Bione, meu nome de meio. Bione vem de beyond. Em língua inglesa significa para além de. Trata-se de um sujeito que enxerga para além dos limites dos olhos. Tento ser um escritor que incomoda. Em minha escrita, busco o longe, o proibido, o intolerável. Às vezes, o inadmissível. Sou um peregrino de sonhos, incansável caçador das perfeições. Sonho um outro mundo, distante das nossas angústias. Eis o sofrimento da minha escrita. Adoro isto!
Os prémios são a terapia dessa dor. As três obras do Quarteto foram premiadas. Isto é lindo! Cativa-me demais. A última obra está concluída. Também promete. Todos os dias converso com ela, alinhando as arrestas. Quero deixar marcas indeléveis na história da literatura moçambicana. Quero que as pessoas encontrem algo de agradável e misterioso na minha escrita. Que sorriem, espantem-se. Peguem as cabeças e no final digam: ya! Este gajo tem viagens. Aí, estarão a viajar na minha companhia.

Mini-Biografia

DRAGÃO BEE YONI é o nome artístico do escritor moçambicano José Bione Carquete. É natural de Maputo. Licenciado e mestrando em relações internacionais. Já conquistou mais de uma dezena de prémios literários. Suas obras versam sobre assuntos que enfermam a nação. Seu primeiro romance (O Testamento da Safira, antes intitulado Os Condenados da Terra) conquistou dois prémios nacionais, nomeadamente: Bienal TDM 2008 e João Dias-2008. Seu projecto, O quarteto da pátria amada e composto pelos seguintes romances: o Testamento da Safira, A virgem prostitua da montanha, Eterna Paz. Os três romances foram premiados. A quarta obra está na fase final.

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